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EU, ELDER F.


Livros, filmes, fotografias e histórias contadas pela metade.

Resenha: 'O Sol é Para Todos' - Harper Lee

Se meus pais me tivessem feito um pouco mais supersticioso, eu diria que as forças do universo trouxeram O Sol é Para Todos até mim. Mas acho injusto reduzir o suor do carteiro e a boa-vontade do Grupo Editorial Record a achismos de meia-tigela. Sendo assim, acredito que os últimos meses não passaram de coincidências curiosas que me levaram até o encontro de um dos clássicos da literatura norte-americana. Eu explico o porquê: no final do ano passado iniciei o projeto Nas Entrelinhas do Mundo que, basicamente, se constitui em ler um livro de cada nacionalidade. Como até então eu ainda estava nos Estado Unidos fazendo intercâmbio, decidi começar os trabalhos por lá. Portanto, convidei o meu namorado, Zach Patten, a gravar um vídeo onde ele pudesse falar sobre que livro norte-americano eu deveria ler como pontapé inicial do meu plano. Ele, sem perder muito tempo pensando, recomendou empolgado: O Sol é Para Todos da Harper Lee.

No final do vídeo, ganhei de presente uma edição de O Sol é Para Todos em inglês, mas por causa do último semestre na universidade tão escuro e cheio de horrores, o livro foi visitado apenas recentemente. Nesse meio tempo em que a obra estava abandonada na estante, consegui estabelecer uma parceria com o Grupo Editorial Record que, para a minha mais animada surpresa, enviou-me no mês passado a nova edição de O Sol é Para Todos sem que em instante algum eu tivesse requisitado o livro. Em face da coincidência tão feliz, decidi enfim iniciar a história da Harper Lee. Por que tinha as duas edições em mãos, não apenas li a brasileira, mas também a norte-americana: To Kill a Mockingbird, para que eu pudesse analisar o trabalho da tradução. Conforme a leitura seguia empolgante, com frequência uma dúvida pairava sob a minha cabeça: "Como eu nunca tinha lido esse livro antes?" Mais do que uma história sobre racismo, O Sol é Para Todos fala da violência contra a dignidade humana que é ainda tão atual, tão contemporânea.

O sul do Estados Unidos tem um histórico de discriminação racial que, entre outros motivos, despontou a Guerra Civil norte-americana no século XIX. Em resumo, os estados do sul apoiavam a escravidão enquanto os estados do norte do país defendiam a máxima de que todos os homens são iguais. O reflexo desse conflito reverbera até os dias atuais, onde até bem recentemente um jovem defensor da "supremacia branca" invadiu uma igreja historicamente negra e assassinou nove pessoas. Uns dias depois várias fotos do jovem foram publicadas onde o mesmo pousava ao lado da bandeira dos Estados Confederados, os estados do sul na época da guerra. A discriminação racial nos Estados Unidos é uma realidade ainda negada por muitos, mas ela ainda se faz presente e não requer análises complexas para ser notada. A maioria dos casos mais chocantes de racismo, provavelmente devido ao contexto histórico, acontecem ou aconteceram em estados do sul do país, como Carolina do Sul,  onde aconteceu o massacre na igreja, Mississippi, que por causa dos constantes casos de racismo inspirou a música Mississippi Goddam da Nina Simone, e Alabama, cenário do livro da Harper Lee.

O Sol é Para Todos, publicado em 1960, tornou-se sucesso de crítica ao descrever a crise da consciência humana que sacudiu a monótona Maycomb, pequeno município do Alabama. No início dos anos 1930, o pai da jovem Scout, o advogado Atticus Finch, é indicado para defender um homem negro acusado de estuprar uma mulher branca. Durante os meses que antecedem o julgamento, Scout e sua família convivem com as consequências da discriminação racial sofrida pelo réu Tom Robinson quando Atticus também torna-se alvo do preconceito e ignorância ao começar a ser tachado de "defensor de negro" e ter seus valores questionados. Scout, a jovem narradora da história, é forçada a lidar com questões intrínsecas ao comportamento humano durante a sua, até então, calma infância. O tema da moral é evidente ao longo de todo o romance, especialmente em relação à religião e à percepção do pecado entre os moradores de Maycomb. O questionamento entre o que é certo e errado trespassa as barreiras das leis vigentes na época para chegar na discussão sobre a dignidade humana. Ou, para ser mais exato, a violência contra a dignidade humana.
"Sabemos que nem todos os homens são iguais, não no sentido que alguns querem nos impor: algumas pessoas são mais inteligentes do que outras; algumas têm mais oportunidades do que outras, pois nascem privilegiadas; alguns homens ganham mais dinheiro que outros; algumas senhoras fazem bolos mais gostosos do que outras; algumas pessoas são mais dotadas do que a maioria.  Mas há algo neste país diante do qual todos os homens são iguais, há uma instituição que torna um pobre igual a um Rockefeller, um idiota igual a um Einsten e um ignorante igual a um reitor de universidade. Essa instituição, senhores, é o Tribunal de Justiça."
Com uma escrita simples e direta, pois a história é contada a partir do ponto de vista de uma criança, é fascinante acompanhar o crescimento da pequena Scout Finch em seu caminho para compreender o mundo. É inegável que o pai, em toda a sua ética, contribui para o crescimento moral dos filhos quando, se questionado sobre temas polêmicos por Scout, responde de forma concisa ao invés de limitar a conversa com um "isso não é assunto para crianças". Como o Zach comenta no vídeo, Atticus Finch é o advogado que todo o estudante de direito que já teve a oportunidade de ler O Sol é Para Todos almeja se tornar e, como adendo a esse comentário, eu diria que Atticus é o exemplo de ser humano que todos nós deveríamos ser. Considerado uma das grandes figuras da literatura norte-americana, Atticus é a encarnação das maiores virtudes por causa de sua disposição estável de praticar o bem.
"- Quase todo mundo acha que está certo e que você é que está errado.
- Essas pessoas certamente têm o direito de pensar assim, e têm o direito de ter sua opinião respeitada - considerou Atticus. - Mas antes de ser obrigado a viver com os outros, tenho de conviver comigo mesmo. A única coisa que não deve se curvar ao julgamento da maioria é a consciência de uma pessoa."
A obra fez tanto sucesso após sua publicação que concedeu à escritora Harper Lee o Prêmio Pulitzer de Literatura em 1961. Desde então, a autora havia decidido não mais publicar nenhum livro até recentemente quando sua advogada encontrou um manuscrito do que parecia ser a continuação de O Sol é Para Todos. A publicação do manuscrito, sob o título de Go Set a Watchman, criou um rebuliço na mídia que foi logo seguido pela decepção entre os fãs do clássico. Embora eu já tenha adquirido o e-book, me detive a iniciar a leitura por causa dos comentários que li sobre essa continuação, todos ressaltando uma completa descaracterização dos personagens. Ainda preciso ler para tirar minhas conclusões, mas há teorias sobre essa continuação, como a que fala que Go Set a Watchman foi escrito antes de O Sol é Para Todos e por isso deve ser considerado uma história independente e não uma sequência.

O Sol é Para Todos é sem dúvida um desses livros que em algum momento na vida acabaremos lendo. A história, infelizmente, se repete no nosso dia-a-dia através de diferentes personagens e em outros níveis de intensidade. É provavelmente por causa disso que o livro continua sendo um sucesso depois de décadas após sua publicação. Mesmo com toda a repercussão envolvendo o que alguns insistem em chamar de a continuação do livro, eu recomendo a leitura de O Sol é Para Todos porque a obra por si só nunca deixará de inspirar as pessoas e de fazer seus leitores questionarem o que entendem por consciência humana. Com um enredo que ganhou o Oscar em 1962 por melhor roteiro adaptado, o romance da Harper Lee pode parecer simples, mas acima de tudo traz ao público temas polêmicos como racismo, injustiça, status social e intolerância que certamente, por algum tempo, ainda serão temas centrais de discussão na nossa sociedade.

Título: O Sol É Para Todos

Título Original: To Kill a Mockingbird

Autor: Harper Lee

Editora: José Olympio

Ano: 1960

Páginas: 364

4 comentários:


  1. Não é a primeira resenha que eu leio do livro mas como certeza é a mais bem feita. Meu parabéns pelo trabalho. Eu ganhei o livro a uns meses também, mas ainda não li. Estou aguardando a oportunidade de pegar ele e eles de início ao fim, mas no momento o tempo me falta.

    www.itgeekgirls.com

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  2. adoro esse livro

    /karola de lotus

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  3. Já tinha ouvido falar desse livro, mas essa foi a primeira resenha que vejo sobre ele e Meu Deus, que marailhosa a resenha e a vontade que me deu de ler esse livro. muito bom, já estou querendo hahaha

    beijos!
    www.amigadaleitora.com

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  4. Olha, nunca tive interesse por este livro, achei que fosse uma coisa cansativa, mas pelo que você falou, vou ver, talvez eu até o leia...

    Até mais

    diurnosleitores.blogspot.com

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